SEMPRE LONGINQUA
- claudiazafre
- 31 de ago.
- 3 min de leitura
Ajuda-me. Não gosto da minha figura quando me olho ao espelho nem tão pouco da minha atitude. Ajuda-me. Sinto-me fraca e inconsequente. Não pode haver um desfecho feliz para isto, pois não, Deus, tu que sabes tudo, tens de me dizer. Ajuda-me.
Mais uma noite em que volta dos bares e discotecas e ora a Deus. A um que está bem distante dela, mas que ela teima que continua próximo. Responsabilize-se a educação cristã, a noção de pecado e a culpa sempre presente. Racionalizando, mas emocionalmente é apenas uma pequena rapariga perdida com a sua criança interior ainda bem presente e a pedir-lhe para ser escutada mais vezes. Garantidamente, se entrasse numa floresta mágica perguntaria a todas as árvores o que fazer da vida. E o que fazia da vida? Tinha um trabalho precário a que se seguiriam muitos outros. Romance? Até acreditava nisso, mas era complicado ajuizar se teria algo a ver com curtes numa sala às escuras.
E se ia um dia encontrar alguém? Questionava e contrapunha com, mas para quê? Era só a moça mais bela da aldeia dela. Faziam-lhe sentir isso mais como um peso do que um privilégio. As outras raparigas olhavam-na de lado e os rapazes queriam todos sair com ela. Havia uma excepção. Mas já nem se falavam. Por vezes, via-a andar de canoa. Nadar. Pescar. Apanhar sol e quase que lhe sentia o cheiro da água a secar na pele dourada. Mas já não se falavam. Era a sua excepção. Não a considerava a mais bela da aldeia e nunca lhe tinha imposto qualquer peso. Nem nunca lhe tinha chamado “puta”, “galdéria” e “vai com todos”. Mas já não se falavam. Tinha saudades. Observa-a à distância. Sempre solitária mas feliz nas suas tarefas quotidianas mas salutares. Uma tarde a sua canoa virou, viu-a vir à superfície, rir e virar a canoa e remar novamente. A sua excepção era assim. Levava tudo na descontração. Indagou se ela também se sentia tão sozinha à noite ao ponto de orar a Deus, mas sabia que não. A sua excepção não era a moça mais bela da aldeia delas, mas bastava-se. O seu único peso era o de uma amizade rompida. Cruzaram-se numa noite. Ela a ir para a discoteca e a sua excepção a ir de bicicleta para casa. Trocaram um olhar. Viu-a a encolher os ombros e pedalar para casa. Quis ir atrás. Saber qual era o seu segredo. Mas ficou.
Seguiu-se uma manhã cheia de remorsos. O que fui fazer outra vez? Nem sequer gosto deste. Foi trabalhar. Apenas uma das colegas de trabalho era gentil com ela. Creio que por ter um instinto maternal desgovernado. As outras tinham medo que ela lhes roubasse os namorados que já de si e às escondidas tentavam sair com ela. Ela tinha algumas regras, ainda assim, se fossem comprometidos dizia logo que não, por ser muito problemática no seu interior, evitava problemas exteriores. Na pausa de almoço que passava sempre sozinha, olhava para a longínqua vegetação. Quem lhe dera ser uma árvore. Aposto que se falasse, ia saber de tudo por ter vivido tantos anos. E era assim que pensava e meditava.
“Esta é fácil, acredita. Merece tudo.” – ouviu alguém dizer. Vislumbrou um grupo de homens sob a vigilância atenta da lua. Começou a andar mais rápido e encurtou caminho. Sentiu passadas em corrida atrás de si e começou a correr. Quando a agarraram, percebeu. Viu todas as suas memórias e sim, a vida passou-lhe em flash como dizem os clichês. Olhou a lua. Distante. Debateu-se. Gritou e berrou. Mas ninguém ajudou. E ela não teve força. Não teve força.
E deixaram-na semi-morta, espancada à beira de uma estrada sem luz.
A sua excepção encontrou-a. Moribunda mas ainda a respirar. Tentou salvá-la. E no hospital disseram que as chances eram poucas. Tinha levado tamanha sova e não só isso. Não só isso. A sua excepção foi paciente apesar da raiva ou até mesmo ira que nela borbulhava. A moça mais bela da aldeia não resistiu. Encontraram os violadores e deram-lhes penas risíveis, porque afinal a rapariga tinha fama e tal. A sua excepção quis fazer justiça pelas próprias mãos e até partiu a cabeça a um deles com um remo pesado da canoa. E assim continuou. Almoçava sozinha e olhava a vegetação densa longínqua. Foi até lá. Chamou pelo seu nome e encontrou uma árvore que se agitou ao chamamento. Sentou-se junto a ela e abraçou-a.
“Também tive saudades.”
FIM
CZ
31 AGOSTO 2025
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