Salvei a minha namorada do apocalipse dos bicho-de-seda
- claudiazafre
- 27 de mai.
- 8 min de leitura
4 dias até ao apocalipse.
Dia 4
Hoje ela apareceu-me nos sonhos outra vez. Estava debruçada sobre uma varanda num prédio que flutuava com a brisa. Sempre que me aproximava o céu parecia rodar sob o seu eixo e sentia o cheiro dos seus cabelos molhados. A sua pele parecia reluzir como ébano e parecia querer segredar-me qualquer coisa. Apesar de estarmos distantes, olhava-a com um amor que quase me liquidificava as púpilas e um bem grande, tão imenso que me apertava o peito. Literalmente, como se tivesse um torniquete dentro de mim. Lembrei-me destas sensações enquanto via um documentário sobre animais dos subterrâneos do mar. Há quem diga que são bichos muito feios, eu acho que a luz nem sempre cria coisas belas, sim, mas a escuridão torneia, faz contornos e senti que desejava caminhar ao lado dela, dar-lhe a mão, ver as nossas sombras reflectidas nos ramos de árvores longas e robustas.
Irei vê-la outra vez, falar pouco e tentar controlar o nervosismo quando pagar os livros, aqueles que hoje me parecerem ter boas capas e títulos. Sei o seu nome porque já a vi ser chamada por outro empregado. Não sou uma stalker solitária, sou uma loner romântica e tenho amigos para cada dedo da mão, mas ela, de seu nome, Nádia, deixa-me tão nervosa que só a olho nos olhos em sonhos.
– É hoje que falas com ela como deve ser. Deixa-te de merdas. – disse Madalena em tom imperativo. A minha melhor amiga e companheira de bebedeiras, provavelmente exausta pela minha odisseia interior de amor adolescente e inseguro.
– Eu sei. Tem de ser.
– Tem de ser é limpar o pó e fazer os impostos. Aqui é mais, falar com uma pessoa que te interessa e deixa a cabeça a mil. Tenho de te explicar tudo. Vais lá e falas, fazes conversa de ocasião, oh my god, qualquer coisa. Olha, nem que seja, dizes-lhe aqueles ramdom facts com que me chateias tanto.
Lembro-me que encolhi os ombros e dei uma dentada selvática no croissant. Fiquei cheia de migalhas. Fiquei dividida entre achar-me um bocado desastrada e permanentemente num estado evolutivo. Um dia terei de aceitar. A perfeição não existe no nosso mundo pragmático e regido por átomos, os sonhos são a purga de um quotidiano ordenado e constantemente seduzido por um caos reguila e controlado que se manifesta em sinais, padrões e as ditas coincidências. Terei de aceitar. O amor não tem fim quando não se manifesta carnalmente e permanece platónico, silencioso e aloca-se em todas as pequenas coisas. Em olhares, objectos, e sorrisos inseguros. Terei de aceitar. Ou não.
Dia 3
Pensei que podia improvisar facilmente e fazer conversa de ocasião. Repensei e achei que seria pouco provável. Fiquei muito desconcentrada quando entrei na livraria e senti um cheiro perfumado bastante familiar. Cativante e apaixonante, como o que tinha surgido no meu sonho. Enchi-me de coragem e perguntei por um livro em específico, o primeiro que me surgiu na mente, não propriamente o ideal mas poderia proporcionar tema de conversa.
– Sim, temos a História do ananás, fruta apaixonante e a sua chegada à Europa.
– Obrigada.
Nádia afastou-se do balcão para me indicar o livro. Quis fazer conversa. Pensa, Madalena, pensa e a minha cabeça desdobrava-se em mil palavras e frases desconexas. Finalmente, uma frase sobrevoou a minha mente e aterrou como um pássaro airoso.
– Gosto muito de livros não-ficção.
Nádia pensou por uns meros milissegundos e retorquiu.
– Qual foi o que gostaste mais de ler? Já percebi que gostas de história.
Tive um curto-circuito, não me recordava de nenhum título ou autor. Uma tela em branco e um dia cinzento. Uma nuvem negra e a sensação de ter os segundos contados e um acidente de palavras na minha garganta, presas por problemas na circulação interna.
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– Não me lembro.
Paguei o livro. Agradeci e saí. Derrotada e com o vislumbre do que podia ser uma coleção redundante de dias aborrecidos. O sol que parecia ter espreitado bem cedo de manhã, agora estava escondido, distante e as nuvens outrora frondosas pareciam agora mantos líquidos cinzentos e ameaçadores. Bebi um café e depois outro. Era assim o nervosismo e a claustrofobia mental. Uma gaivota fez-me uma razia e grasnou ao meu ouvido. Pareceu-me zangada. Comecou a chover e abriguei-me debaixo de umas amplas arcadas, onde uma velhota repousava sentada num degrau a observar a chuva. Pediu-me um cigarro e em troca, ofereceu-me um pacote de leite com chocolate. Disse-lhe que não bebia daquilo desde miúda, ao que respondeu que eu ainda parecia uma miúda, não levei como insulto. Bebi o pacote de leite a observar a chuva. Senti que a senhora queria conversar mas o meu problema com conversa de ocasião não era limitativo a crushes, era mesmo para a população geral.
– Vai estar a semana toda de chuva. É o que dizem.
Depois tirou uma caixa de sapatos com pequenos buracos da sua mochila gasta. Sorriu e pareci que a vi como se fosse uma criança novamente, estava genuinamente feliz. Fez um gesto para que me aproximasse. Dentro da caixinha estavam dispostas caminhas de folhas de amoreira e por cima, ondulavam vários bichinhos da seda.
– Bombyx mori.
– Desculpe?
– É o nome em latim destes pequenos e podes tratar-me por tu. Nunca tomaste conta deles em criança, ou como dizes, miúda?
– Não.
Aproximei-me mais. Os bichinhos-da-seda moviam-se lentamente e juntos, pareciam fazer uma coreografia perfeita e síncrona, que escaparia à imaginação de um humano.
– Daqui a dois meses, transformam-se. É bonito quando acontece. Já viste acontecer alguma vez?
– Não.
– Eu este ano não vou conseguir ver. – a sua expressão tornou-se muito triste – mas não faz mal, já vi muitas vezes.
Raramente me imiscui na vida de estranhos, tanto seja a falar da vida deles como a fazer perguntas sobre eles, mas desta vez senti um aperto no peito e resolvi indagar.
– Não vai ver, porquê?
Sorriu de forma enigmática, encolheu os ombros e no deslize final de um suspiro disse:
– Estou doente. Muito doente.
– Lamento. – Estupidamente, foi a única coisa que me ocorreu dizer, mas senti sinceramente.
– É o que é. Olha, fica com eles.
– Não posso.
– Vai fazer-te bem. – e sorriu, outra vez, o enigma.
Peguei na caixa e olhei-a enquanto pegava na sua mochila. Apertou-me a mão com as suas duas mãos. Não estavam geladas, pelo contrário, quentes e quase que senti o pulsar das suas veias.
– Fica bem. Lembra-te, dois meses. Tudo tem o seu tempo devido.
Deixei que se afastasse. Nunca soube o seu nome. As luzes da praça fizeram-lhe um efeito estranho nos cabelos, como se fossem feitos de fogo, luz vivaz e fogo. Estava doente mas caminhava com a leveza de quem firmou o seu caminho, viveu os seus sonhos e encontrou descanso interior. A sua alma contida mas vibrante que sempre lhe guiou os passos. Hoje quando dormir vou dar-lhe um nome. Hoje quando adormecer vou estar a pensar nela. Hoje quando sonhar vou sentir mágoa e depois paz.
Dia 2
Observei os bichos-da-seda a petiscar a folha de amoreira. Fiz um café e saí. O sol tinha voltado. Passei pelas arcadas. Vazias. Na parede alguém tinha escrito a letras vermelhas (sem esperar ser corrigido) “Um orgasmo por dia dá saúde e alegria”. Concordei e tive de sorrir porque as mensagens anónimas deixadas por anónimos para pessoas que nunca vão conhecer sempre me pareceram românticas e necessárias para o funcionamento salutar da sociedade é isso e a sociedade talvez precise de mais orgasmos. Uns metros mais à frente, alguém tinha desenhado uma criatura que podia ter saído de um livro de zoocriptologia, uma mistura de leão com cavalo marinho e cabeça de veado. Em baixo dizia em letras azul-celeste “Salvem os gambuzinos!”, concordei, é altura de se pensar mais neles, e deixar de policiar quem procura o que não existe. O interesse talvez esteja na curiosidade da procura.
– Gosto mais do outro mas este também está engraçado. I guess.
Reconheci imediatamente a voz. Nádia. Fiquei imediatamente nervosa.
– Do outro?
– Ya, o da saúde e alegria. É recente. Costumo reparar nestas coisas, é o que dá morar fora da cidade. Entre tags, grafittis e dizeres, suporto melhor as viagens assim.
– Também costumo reparar. – e pensei “sou mesmo uma idiota.”
– Ya. É fixe.
– Sim. – e pensei “Sou mesmo cretina, diz mais cenas.” Por outro lado, ouvi a voz do antigo rei de Espanha “porque no te callas?!”
Deve ser aquela imagem cartoonesca de ter um anjo e um diabo em cada ombro. Não sei qual deles é o mais sensato ou se será sensato ser sensata e não sera melhor encontrar alguma segurança no que poderá ser considerado insensatez e se isso não será sensatez camuflada. – É mesmo uma idiota chapada – anjo e demónio concordaram na sua acepção da minha personalidade.
– Vou trabalhar. Queres vir comigo? Quer dizer, não trabalhar trabalhar comigo, mas acompanhar-me só.
Anui. Pensei em determinadas coisas que lhe queria dizer, mas pensei de forma errada, pensava no que ela poderia gostar de ouvir para parecer interessante aos seus olhos, mas não era esse o caminho, não. Ao invés, pensei no que lhe queria mesmo dizer.
– Já tomaste conta de bichos-da-seda em criança?
– Não. Mas a minha irmã sim, tinham lá na escola dela.
– Deram-me uma caixa com eles.
– Foi? Quem?
Contei-lhe. Tudo. Como começou a chover e me sentia miserável. O barulho da chuva a bater nas arcadas. O sorriso enigmático da senhora que nunca vou saber o nome. A maneira como a luz se reflectiu nos cabelos enquanto se afastava e a forma como andava.
– Leve como a luz.
– Luz como a leve.
– Leve a luz como.
– Como a luz leve.
E jogámos com frases até chegar à livraria. Abraçou-me, pegou-me no telemóvel e pediu-me para lhe ligar. Costumo dizer que as coisas são quase sempre melhor quando as vivemos dentro da cabeça só com o fluir da nossa imaginação, mas às vezes a realidade bate e bate mais. Salvem os gambuzinos. Não façam pouco de quem procura e procura sempre.
Dia 1
Reparei que um dos bichos-da-seda estava mais quieta num dos cantos. Percebi que era fêmea pela sua largura. Observei-a por uns segundos e deitei-me a ler um livro que comprei sobre bichos-da-seda.
– Não sabes como é frustrante passar a vida a comer folhas de amoreira.
– Pardon? – não sei por quê mas fiquei um pouco mais espantada por me ter saído a exclamação em espanhol do que ao ver que em frente a mim se erguia um bicho-da-seda de cerca de 2 metros.
– Gostava de comer sushi um dia destes, ouvi dizer que é bom.
Esfreguei os olhos, como vi que fazem nos filmes e depois belisquei o braço.
– Sim, sou real. Ouve lá, orientas-me um cigarro?
– Pardon? – outra vez o espanhol. Saquei de três cigarros, um para ela e dois para mim, estava a precisar.
– Gracias! – ao menos, tinha sentido de humor, podia ser que não me matasse, é que era mesmo gigante.
Deitou-se ao meu lado sem pedir licença. Não era de cerimónias. Soprou o fumo para o tecto, piscou os olhinhos e com eles bem abertos e num esgar de sonhadora, confessou:
– Daqui a dois meses, faço casulo, e piro-me.
– Vais para onde? – perguntei com curiosidade genuína, esquecendo que estava a falar com uma bicho-da-seda gigante.
– Porto Rico.
Pareceu-me boa ideia. Engasguei-me com o fumo. Nunca é boa ideia fumar dois cigarros ao mesmo tempo. É pouco gracioso.
– Tens uvas?
Assenti e trouxe-lhe um cesto de fruta. Disse para a tratar por Bombyx porque o latim sempre seria mais adequado. Conversámos bastante durante horas e contei-lhe sobre a minha paixão. Encorajou-me e deu-me bons conselhos, nomeadamente não ser mais teórica que a teoria, que o amor se baseia mais em acções e pouco em palavras, que as deixasse para as poetas. Fiz uma sesta. Quando acordei, não havia sinal de Bombyx e a caixinha estava vazia. Um papel estava pousado em cima da mesa e ouviam-se barulhos estrondosos que estremeceram as janelas. O papel dizia simplesmente “Agora é a nossa vez de vos fazer em seda. Nada de pessoal. Até és fixe. Sempre tua, Bombyx.”. Um braço decepado bateu contra o vidro. Timidamente, vi o cenário através da janela. As pesssoas corriam, atropelavam-se, carros estavam parados, e alguns capotados no meio da estrada. Um grande bando de bichos-da-seda gigantes, agora de mais de 20 metros, pululavam pela cidade, tragando nas suas bocas agora cheias de mandibulas afiadas alguns humanos que pareciam bonecos de trapos. Corri pela rua, vi-a no meio do caos generalizado, ela também corria, agarrei-a pela cintura e dei-lhe no beijo toda a esperança da sobrevivência. Procurando, iríamos procurar sempre.
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