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A mulher que fez do bairro um mundo

Sempre lhe disseram que valia pouco. Pobre e demasiado sonhadora. Quando as coisas lhe corriam mal, lembrava-se sempre da aula de História do 9º ano. Gostava muito de olhar pela janela, e a professora admoestou-a, dizendo “a tua vida vai ser ainda mais trágica que a de Inês de Castro”, ficou em pânico tímido e silencioso, e desde então pensou que ia morrer quando lhe arrancassem o coração. Depois cresceu e isso já aconteceu tantas vezes. Já não liga. Já não receia nem tem pânico. Foi essa força que a afastou das invejas, idas a bruxas e superstições mesquinhas. Que a manteve vibrante. Que lhe fazia bater o coração e nunca mais o iriam arrancar. 


Repousou a cabeça no ombro da sua melhor amiga. 

“Estás a precisar de dinheiro? Posso ajudar até receberes.”

“Não, obrigada. Acho que consigo orientar-me.”

“Vê lá.”

E partilharam um cigarro no terraço por entre os berros, os foguetes e os uivos. Era o Benfica que tinha ganho? O Sporting? Completamente indiferente. Mas soube-lhe bem sentir e ver a festa, a alegria do bairro e a euforia de todos. Eram poucos os seus momentos de lazer e aproveitava as folgas para ler. Lia muito. Também gostava de cantar mas fazia-o quando tinha a certeza que a sua mãe não estava em casa. Trabalhava nas portagens, dizia poucas frases além de “bom dia” ou “boa tarde” dependendo dos turnos. Nos primeiros meses de trabalho, sorria, era minimamente entusiástica mas com o passar do tempo, tornou-se maquinal, quase robótica. A sua vida era como uma tela de um mar bravo, de que se imaginava a rebentação das ondas mas que se mantinha estático. Tinha uma timidez típica de adolescente que nunca tinha superado. Evitava olhar as pessoas nos olhos e nunca iniciava conversa nas poucas festas a que ia. A sua única amiga próxima, e automaticamente a melhor, era o seu oposto, extrovertida e destemida, era a sua intérprete do mundo. Dava-lhe dicas de socialização, nunca em jeito de reprovação, mas com uma profunda empatia, eram as duas de pólos diferentes mas tinham um elo inefável que as ligava. Ambas acreditavam e sonhavam que o mundo podia ser sempre melhor. Nasceram, cresceram e tornaram-se adultas no mesmo bairro, separando-as apenas dois quarteirões. Conheceram-se na escola primária e tornaram-se inseparáveis desde então. Aos 9 anos, enquanto os seus colegas corriam e saltavam pelo jardim, elas ficavam num banco a partilhar uns auriculares, e no walkman os acordes desenfreados e a voz icónica de Kurt Cobain. Quando o ouviam, era um mundo novo que se desenhava ali, mesmo à sua volta, numa redoma sónica de cumplicidade. Aprenderam rapidamente inglês e trocavam cassetes de áudio gravadas em casa. No dia em que souberam da morte de Kurt Cobain, sentaram-se em silêncio na carteira e partilharam a mesma tristeza e pesar. Perceberam que há fins, mas mais precioso, a certeza que as memórias perduram e as emoções são transmissões invisíveis mas vibrantes que fazem com que o brilho dos olhos transmuta o ambiente. A música unia-as mas nunca a tinha ouvido cantar. Nunca se atrevera a cantar em frente da sua melhor amiga, nem mesmo ela que mais não era que uma extensão de si própria. Fazia-o às escondidas, era um segredo que só seu. Até ao dia em que foi descoberta. Não ouvira a sua mãe entrar em casa, e quando a viu, espantada a olhar para si, foi acometida de uma vergonha intensa, como se tivesse sido apanhada sem roupa. A mãe sorriu e os seus olhos brilharam. 


-Nunca tinha ouvido a tua voz assim. Tens uma voz linda. Recomeça e nunca pares de cantar até ao fim dos dias. 


A sua mãe nunca tinha sido uma pessoa muito emotiva ou efusiva. Foi estranho ver a mãe com traços de alguma emoção mais forte. Acordou bem cedo como era costume, para ir trabalhar. Ao atravessar o bairro, as rotundas tão repetitivas e comuns naquela zona, tornaram-se algo mais divertido aos seus olhos, um vaivém circular de carros. Os muros descarnados tornavam-se uma tela cheia de possibilidades e um convite às cores e aos relevos. Ia a ouvir música como costume, e atreveu-se a cantar baixinho. Quando entoou a palavra Bird, um pássaro voou na sua direcção e pousou no seu ombro. Ficou abismada. Continuou a cantar e o pássaro firme no seu ombro, começou também a chilrear. Quando cantou a palavra grass, erva começou a crescer debaixo dos seus ténis, rompendo o asfalto à medida que seguia o seu caminho. Quando chegou ao seu trabalho, não foi para fazer o turno mas para apresentar a demissão. O pássaro olhou-a. Compreenderam-se. Depois levantou vôo. A sua voz era linda, a sua mãe tinha razão e para ela tinha desejado mais do que uma sequência robótica de “bom dia” e “boa tarde”.  Na tela que era a sua existência, o mar bravo começou a mover-se. Já não havia mais estática. Tudo era movimento e emoções. De regresso ao bairro, foi a cantar mas já não baixinho, era um som que parecia não vir das suas cordas vocais mas de um coro gigante ora celestial, ora intempestivo. Os refrões e versos de quem tinha ficado em silêncio por muitos anos. As emoções eram entes vivos e no seu coração iriam rufar ainda muitos tambores. E o bairro encheu-se de uma sinfonia contagiante. 


FIM


CZ 11/12 JULHO 2025

 
 
 

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