O HOMEM QUE RECUSOU-SE A SER ELE PRÓPRIO
- claudiazafre
- 27 de mai.
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Nunca tive um ego muito grande. A auto-estima também nunca foi maior, mas quando ela me deu um abraço, olhou-me nos olhos e disse: “és um actor do caraças”, senti algo que sempre quis ter sentido ao longo da minha jornada para adulto, as tais “borboletas no estômago”. Não pela proximidade física ou porque era uma jovem atraente que me tinha elogiado, mas pelo elogio em si. Aquela descarga de electricidade quando reafirmam que és especial. E eu sabia que era especial. Apenas nunca me tinham dito abertamente e de forma tão espontânea. Claro que dormimos juntos. Eu vou ser sincero, não sou um gajo muito simpático e depois do acto, deixei que ela adormecesse para me aninhar no sofá da sala. Não suporto dormir, ou seja, passar a noite com outras pessoas.
Há pessoas com boas intenções mas que são autênticos desastres nas lides românticas, eu não sou dessas pessoas, nunca tive boas intenções e sempre fui um desastre. Fui, sou e semprei serei um calhorda nesse departamento. Não só com as mulheres, mas também com homens, considero-me e sei que sou absolutamente bissexual e não é daí que vem mal ao mundo. Mas é de outro sítio que vem esse mal. Na total incapacidade de sentir-me “um” com outra pessoa. Não tenho dinheiro para terapia, por isso, nunca pude ajuizar razões e aprofundar as raízes das questões, mas desconfio que tenha partido de um encontro de infância. Eu tinha cerca de 6 anos. Foi durante o verão. Os meus pais tinham alugado uma casa de férias e deixavam-me “à solta” durante a tarde para brincar com as crianças da vizinhança. Desde essa ideia que já tinha queda para o teatro e para a música, então era costumeiro andar com uma flauta barata de bisel. Era cor-de-laranja e eu soprava lá para dentro ritmos que gostava que produzissem belas melodias. Sentia-me orgulhoso quando os outros miúdos batiam palmas. Em retrospectiva, acho ridículo porque dali só devia advir um gasto de saliva e uma chinfrineira absoluta. Mas estranho como aplaudiam, estranho como fingiam estar agradados e eram apenas crianças, mais velhos do que eu, mas ainda crianças. Como já sabiam fingir. Nojento.
Foi numa tarde em que estava a colher amoras como era habitual e uma das raparigas, cabelos cor de trigo e sardas cor de caramelo que harmonizam com olhos da mesma cor, me agarrou na mão e disse que tinha uma coisa para me mostrar. Fomos de encontro a um rapaz muito semelhante a ela, cabelo cor de palha amarela, sardas e sorridente. Disseram-me que tinha 14 anos e queriam mostrar-me uma coisa. A partir daí, retenho apenas flashes, uma de estar num barracão cheio de ferramentas e deitado em cima de um estrado, e de um e outro se terem metido em cima de mim. A frase que retenho “Vamos mostrar-te como fazem os adultos”. Nada mais me lembro. Apenas que a minha avó me proibiu de deambular sozinho durante a tarde, e passei as tardes em casa, a ver televisão. Foi numa dessas ocasiões que vi o filme que iria mudar a minha vida: “Um eléctrico chamado desejo” com o grande Marlon Brando. Os gritos desesperados de Brando sempre me ficaram na memória. Lembro-me de falar muito desse filme nos anos seguintes e me dizerem consecutivamente “és muito novo para entender esse filme”. Pois, desde sempre achei que eles é que não entendiam. Cresci, vi o filme várias vezes, li ensaios sobre, ouvi podcasts sobre, e continuo a achar que eu é que sei. Eu é que tenho nos ouvidos os gritos desesperados do Brando a cada segundo da minha existência. E eu, eu de todos, que nunca me apaixonei nem nunca quis ninguém ao ponto do desespero.
Quando ela me viu no sofá, sentiu-se, creio, indignada e confusa. Respondi-lhe que não apreciava dormir com pessoas na mesma cama. Encolheu os ombros e deu-me uma festinha no braço. “Vemo-nos por aí”. “Talvez”. Ficou desiludida, como tantas outras e outros, e fechou a porta com mais força do que a seria necessária. Já tinha referido que não sou simpático, mas tento ser sincero o máximo que consigo. Olhei-me ao espelho. Sou bonito, creio, mas não no termo convencional. O director da peça escolheu-me por isso mesmo, e também porque, nas suas palavras de artista “eu encarnava o espírito visceral da personagem”, compreendi o que dizia mas achei rídiculo e pedante na mesma. Preparei-me para ir trabalhar das 9 às 5 como habitual. De noite, teria mais uma sessão da peça. “Pensava que te tinhas deixado disso de ser actor”, diziam-me muitas vezes alguns conhecidos do liceu e faculdade, mas que sabiam eles. Eles não sabiam os gritos que eu ouvia persistentemente e que tinha, finalmente, encontrado o meu papel. O meu verdadeiro “Eu”. Eu era o Stanley Kowalski. Eu e mais ninguém. Eu não sou um gajo simpático, mas tento sempre ser o mais sincero que consigo.
As palavras da tipa ecoaram na minha cabeça durante o expediente de trabalho. “És um actor do caraças.” e realmente sou, quase que passo por um funcionário de escritório normalissimo, banal e chato com conversas da treta junto à máquina de água. Mas quando a noite cai, sou Stanley outra vez. Quando me deito neste catre duro e frio, tento relembrar-me dos eventos daquela noite, mas felizmente ou não, apenas retenho flashes. A advogada disse que foi um momento performativo levado longe demais e que perdi a sanidade durante o processo. Os familiares da vítima dizem que sou um monstro sem esperança de redenção. O director teatral arrepende-se de alguma vez me ter contratado e que sou apenas um actor amador que só sabia representar um papel, ou seja, uma espécie de one-trick-poney. O resto do elenco tenta apenas destacar-se de alguma vez ter trabalhado comigo. E a que me disse “és um actor do caraças” quando chamada a depor, apenas referiu que eu era um sociopata que merecia o castigo aplicado. Mas só eu ouvi os gritos, só eu sou Stanley. Só eu mordi a jugular da minha parceira. Por me ter estragado a vida com a Stella, entendem? Só eu senti o sangue respigar na minha face. Só eu lambi o sangue. “És um actor do caraças”. Só eu sou Stanley.
25 MAIO 2025
CZ
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