Cão Fantasma – Todos os cães vão para o céu
- claudiazafre
- 27 de mai.
- 4 min de leitura
Eras só uma pequenina bola de pêlo quando te encostei a mim. Respiravas baixinho e sentia o teu coração bater bem junto ao meu. Depois cresceste, ficaste com os olhos mais vivaços e a cauda nunca parava de abanar. Tenho saudades tuas, agora e sempre. Deitei-me outra vez para um sono agitado e mais um sonho vívido. Memórias do passado, amores que deixei escapar e que voltam para me semi-arruinar as horas que passo acordada.
Levantei-me para mais um dia incrível e cheio de aventuras, ou então apenas mais um, mas recuso-me a pensar assim, por isso, abri o jornal para ler o horóscopo. Amor, talvez para o mês que vem, saúde, tudo controlado este mês, finanças, em risco de bancarrota por gastos excessivos e superficiais, creio que se deve referir à estátua em tamanho real com semelhanças ligeiras com a Beyoncé que comprei na internet. Não lhe dei um nome para não me apegar demasiado mas mudo-lhe a roupa todas as semanas e costumava narrar-lhe todos os meus gestos e movimentos. “Agora vou fazer uma omolete.” “Vou tomar duche.” “Agora vou arranjar-me para ir à praia”, mas o silêncio que recebia em troca aumentava os meus níveis de ansiedade, então agora vivemos em silêncio mútuo e respeitoso. Não é que eu não tenha amigos, até tenho, um ou dois, ou até dá para encher uma mão, a sabedoria popular não diz que é suficiente? Bem, eu acredito nos ditos populares. Menos o “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”, sempre fui procrastinadora.
Evitei passar na mercearia ao fundo da minha rua porque o novo empregado tem a tendência de me querer dar mercearias de borla se for ao cinema com ele, coisa que não me apetece de momento. Se já é difícil lidar com pessoas à luz do dia, não sei como será na escuridão da sala de cinema, está bem que é suposto ficar em silêncio a olhar para a tela, mas a proximidade física no escuro ia aumentar os meus níveis de ansiedade, e fazer-me lembrar aqueles jogos do “quarto escuro” nas raras festas de anos para as quais era convidada em miúda. Creio que foram úteis para ao menos respeitar ainda mais a minha paz e o meu espaço.
Comprei mais um livro e um afia-lápis em forma de iate. Os meus lápis estão cheios de sorte. Sabes, os dias não são tão cheios desde que partiste. Custa-me a andar, como se estivesse de botas da tropa a caminhar pelo rio abaixo, rio acima, margens cheias de…alfaiates. Lembrei-me! Há uns anos, quando virei a canoa por estarem alfaiates agrupados junto à margem, e provoquei uma onda de risos. Saí do rio, derrotada e com alguma mágoa por ter estado a impressionar uma miúda que agora olhava para mim e tentava não rir. Coisas da adolescência.
De volta a casa, preparei um lanche e, como sempre, esqueci-me que já não estavas e cortei a maçã em bocados pequeninos como costumavas gostar. Sentei-me para ver televisão, zenTV como sempre. Imagens de ilhas paradísiacas com música de templo budista fazem sempre sentir-me menos mal. Estranho. A televisão perdeu o sinal. Agora está cinzento com barras cor-de-rosa.
“Ei, miúda.” – falou-me uma voz rouca que parecia vir da televisão.
Hein? – respondi, enquanto saltei do sofá como se tivesse uma mola no traseiro.
“Não tenhas medo. Calma. Respira.” – respondeu-me a mesma voz mas num registo bastante calmo.
Quem é? – sentindo-me estúpida a falar para o vazio.
“Estou aqui. Olha para a televisão. Não tenhas medo.” – disse a voz agora num tom bastante jovial.
És tu!
“Sim, miúda.”
Dei vários estalos a mim própria. Será isto um surto ou será que colocaram algo na água com gás que pedi no café?
“Ei, que é isso? Não sejas agressiva para ti mesma. Tem lá calma.”
Mas…não é possível! – Respondi e então é que vi bem a imagem na televisão.
Uma ternurenta e felpuda bola de pêlo com olhos cor de mel, olhava para mim e abanava a cauda com bastante energia. Aproximei-me da televisão com um pouco de receio mas ao mesmo tempo, sentia uma felicidade imensa.
E falas e tudo.
“Sempre falei, mas agora entendemo-nos melhor, não achas?”
Sim. Tive tantas saudades tuas.
“Eu sei, por isso é que voltei.”
E com isto, tirou uma patinha e depois outra e saiu da televisão.
“Também tive saudades de passear contigo. Atingir o nirvana não é assim tão precioso como dizem.”
Atingiste o nirvana?
“Digamos que em estado perpétuo de nirvana. Mas a verdade é que senti falta dos nossos passeios. Ainda tens a minha farpela?”
Claro!
Coloquei-te novamente a coleira novamente e a trela. Mais o casaco porque dizem que vai ficar mais frio ao fim da tarde. As pessoas por quem passava, olhavam-me de viés e faziam comentários baixinho. Mas elas não sabem, que por baixo da aparente tristeza e solidão, está a felicidade sempre a despontar, explodir, despontar e o mundo é mesmo assim quando se é feliz, agridoce.
-Olha, a do quinto andar pirou de vez- ouvi comentarem quando virei a minha rua.
“Não lhes ligues. Elas lá sabem.”
E o que se sabe? É que ter amor na ausência e na presença, afasta toda e qualquer doença.
CZ 26 AGO 2023
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