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A mulher que falava em onomatopeias

Elisa olhou a janela e viu o seu reflexo. Evitara desde sempre olhar-se ao

espelho, e ainda mais que lhe tirassem fotografias. Não era uma questão de

vaidade, ou até de estima, mas uma franca falta de hábito. Desde pequena que

era assim, como se a sua imagem exterior a abismasse de forma que sofresse

das tais crises de tontura, que com o tempo apelidara de tonturas existenciais.

Nesta tarde, olhou-se e não virou a cara com brusquidão. Havia algo nela

diferente. O seu olhar, outrora calmo e macilento, dera lugar a uma vivacidade

que nunca tinha presenciado. Atribuiu as culpas ao excesso de café. Eram

apenas 11 da manhã e já tinha bebido 3.

Passara a manhã a ler e a classificar e depois rasurar um livro de um autor

encarcerado pelo regime, o seu nome era Noel Balino. Um nome estranho e

muito incomum. A escrita do autor era ainda mais esquisita. O livro chamava-

se “Da liberdade como a pomba que obra em cima do regime”. Seria mais um

daqueles livros aberrantes, cheios de tabuísmos, por conseguinte, uma desonra

e ofensa para qualquer pessoa de bem. Claro que os de bem, nunca diziam

palavrões, expressavam-se de forma civil com “sim senhor”, “claro, senhor”,

“Com certeza que sim”, usavam roupa imaculada e sem nunca nenhum botão

em falta, tudo impecável enquanto penduravam uma flor de lis na lapela para

mais um sacramento ao domingo. Elisa nunca fora de missas, mas obrigada

pelos pais e depois pelo patrão, lá acabou por ir. Fazia-lhe confusão as chagas

do Jesus, mas ainda mais os seus olhos fechados, complacentes com o

sofrimento que lhe fora infligido…e foi tudo tão injusto. Ora pois.

O Noel Balino deve ter sido um esquerdista perigoso porque estava

encarcerado desde que Elisa era ainda menina. Sempre ouvira falar no Balino,

como qual bicho papão. “Vai já para a cama, Elisa ou vem o Balino” “Olha o

Balino, Elisa”. E Elisa tinha imaginado uma figura barbuda, alta e disforme,

mas com corcunda e nessa corcunda várias bolhas vulcânicas de pus. O cabelo

ungido de gordura e pedaços de carne de seres que teria devorado e as mãos

ossudas e viscosas. Um ser no entrecruzamento do réptil, gnomo e gigante.

Por isso, quando viu o livro de Balino no monte que teria de ler e rasurar

durante a manhã, não conseguiu deixar de tremer e ter um acesso de suores

frios. Esperava uma autêntica enciclopédia de obscenidades e fetiches

satânicos, mas deparou-se com algo diferente. A sua mão, como que

mecanicamente e habituada à rasura, procurava as frases que melhor se

aplicariam ao gesto, mas o seu cérebro impunha alguma resistência. E Elisa ao

notar traços de uma resistência, esbofeteou-se com força. Resistência era algo


que no regime só se aplicava ao campo da medicina, como quando por

exemplo, uma doença é resistente ao tratamento ou medicamento x e nunca,

mas nunca à sociedade civil, para quê resistir? Se tudo era ordeiro, pacífico e

sublime na paz e na luz do Consulado do Regimento, cuja figura, a de um

sujeito bem-apessoado e sorridente, levantava levemente a mão direita numa

saudação amigável. O sujeito tinha tido um nome anteriormente, mas agora

apenas o tratavam por Estimado Líder e ninguém fugia do seu sorriso e olhar

sadio e amigável, seja nas escolas, ginásios, oficinas, universidades e até alguns

prostíbulos clandestinos. Por isso, Elisa esbofeteou-se e beliscou-se com tanta

força que pequenas lágrimas se aglutinaram à volta dos seus olhos castanhos

cor de caramelo. Lembrou-se por que é que tinha sido escolhida para tão

excelsa tarefa de rasurar obras “perigosas”.

- Elisa, és adequada.

- Elisa, és tão calma e paciente.

No entanto, lembrava-se também das notas do Director do departamento, que

jura que não quisera ler e que até passou uma noite em claro por essa

transgressão não intencionada. Leu “pessoa de sexo feminino altamente

manipulável, ordeira e sã de espírito.”. Passou a noite em claro porque sabia

que não deveria ter lido as notas do Senhor Director, mesmo que

acidentalmente, mas também porque urgiu pensar em como e por que é que a

consideravam aquelas coisas.

Na realidade, Elisa não tinha quaisquer ideias sobre si própria, a não ser

aquelas que lhe impunham os outros, nomeadamente ser estranho ela ter 34

anos e ser solteira. Assim sem um companheiro, parecia até estranho, os seus

pais diziam muitas vezes. Mas Elisa nunca sentiu necessidade de procurar no

sexo oposto qualquer espécie de resposta, ou necessidade de apego, o que

para outras era um imperativo biológico e/ou apego emocional para Elisa era

algo em que nunca pensava e/ou uma completa ausência de necessidade. Por

isso, foi-lhe requisitado em Anexo 36-B Artigo 324º que para facilidade do

prestígio do Regime, lhe seria galardoado um companheiro. O requerimento

entraria em vigor daqui a uma semana. Serviria o Regime na medida de

acasalar e reproduzir como seria digno de qualquer mulher fértil da sua idade e

ainda muito mais novas. Seria o mínimo que podia fazer pelo Regime que lhe

garantira uma existência segura e plácida. Elisa anuiu e prometeu aos pais que

se ia comportar condignamente e aceitar o que o Regime lhe provia como

destino com a dignidade de boa profissional e cidadã sem mácula.

Mas enquanto lia “Da liberdade como a pomba que obra em cima do regime”,

deu por si a olhar, várias vezes para o seu reflexo na janela. Notou que o seu


olhar estava um pouco mais aceso e deu por si a sorrir várias vezes, e a rir até

algumas vezes, e não era como as piadas do Regime sobre homossexuais,

negros, lésbicas, muçulmanos ou emigrantes ilegais. Era um riso genuíno. Aqui

fica a passagem que fez Elisa sorrir e sentir o seu olhar relampejar pela

primeira vez na vida.

“Quando o vi, disseram-me que não era bem assim que se fazia, que tínhamos

de ser só amigos e companheiros de copos. Mas quando o vi, o meu coração

retumbou como no samba do carnaval do Rio de Janeiro, percussão

ensurdecedora, o meu coração fez ZÁS-CATRAPAZ-PAZ-PAZ.”

A passagem seguinte retratava um beijo entre dois homens, algo que Elisa

teria, obviamente de rasurar. Mas não, optou por esconder o livro na sacola.

Algo que era uma transgressão de primeira ordem. Para além disso, infringiu

ainda mais a lei, falseando os registos.

Não foi o pior que Elisa fez. Deu por si, só a conseguir exprimir-se por

onomatopeias como as que lera no livro de Balino. Quando lhe diziam “Bom

dia”, Elisa respondia “Zás”, quando lhe diziam boa tarde, Elisa respondia

“Catrapaz”, quando lhe diziam “Boa noite”, Elisa respondia “Paz paz”. Os

seus pais ficaram imensamente preocupados e iam informar o Departamento

de Comportamento mas Elisa garantiu-lhes que estava bem. Acreditaram,

porque Elisa era tão simples e querida que nunca poderia mentir. Nunca. Mas

Elisa mentiu.

Quando viu o companheiro atribuído pelo Departamento de Matrimónio e

Acasalamento, cujo slogan e jingle ainda vibrava na sua cabeça (“Não sejam

preguiçosos, sejam corajosos, tenham crianças, fomentem as esperanças”)

ficou vidrada a olhar à sua volta e depois finalmente para ele que,

sorridentemente lhe acenou. Cumprimentaram-se de forma respeitosa e ao

modo do regime com um aperto de mão e um sorriso. Elisa ouviu mais os

sons dos talheres que a voz do seu futuro companheiro, por isso permaneceu

na mais completa ignorância sobre ele até saírem do restaurante. Quando ele

lhe pediu para preencher o cartão dele em como tinham jantado e dado

muitíssimo bem, a mão de Elisa ia assinar maquinalmente como quem rasura

livros o dia inteiro há mais de 20 anos, mas algo a impediu. Lembrou-se da

passagem do livro de Balino. O seu coração não ecoava. Nada sentia. E isso

tornou-se intolerável. Não havia samba no seu coração. Então quando o seu

companheiro se aproximou para lhe desejar boa noite com um pequeno beijo

respeitoso na bochecha, Elisa mordeu. Mas selvaticamente, como uma pessoa

perdida no deserto que encontra um oásis. O desespero da salvação. Elisa

mordeu e não largou, até a sua boca se encher de sangue e plasma. Elisa

mordeu e cuspiu. Elisa não ouviu os gritos de horror porque horror era o que


a tinha rodeado ao crescer. Elisa cuspiu bocados de carne. E depois, disse

alegremente ZÁS-CATRAPAZ-PAZ-PAZ, num grito que ecoou pelo país

prazenteiro, brando e fascista.


CZ 13 MAIO 2025

 
 
 

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