A mulher que falava em onomatopeias
- claudiazafre
- 27 de mai.
- 6 min de leitura
Elisa olhou a janela e viu o seu reflexo. Evitara desde sempre olhar-se ao
espelho, e ainda mais que lhe tirassem fotografias. Não era uma questão de
vaidade, ou até de estima, mas uma franca falta de hábito. Desde pequena que
era assim, como se a sua imagem exterior a abismasse de forma que sofresse
das tais crises de tontura, que com o tempo apelidara de tonturas existenciais.
Nesta tarde, olhou-se e não virou a cara com brusquidão. Havia algo nela
diferente. O seu olhar, outrora calmo e macilento, dera lugar a uma vivacidade
que nunca tinha presenciado. Atribuiu as culpas ao excesso de café. Eram
apenas 11 da manhã e já tinha bebido 3.
Passara a manhã a ler e a classificar e depois rasurar um livro de um autor
encarcerado pelo regime, o seu nome era Noel Balino. Um nome estranho e
muito incomum. A escrita do autor era ainda mais esquisita. O livro chamava-
se “Da liberdade como a pomba que obra em cima do regime”. Seria mais um
daqueles livros aberrantes, cheios de tabuísmos, por conseguinte, uma desonra
e ofensa para qualquer pessoa de bem. Claro que os de bem, nunca diziam
palavrões, expressavam-se de forma civil com “sim senhor”, “claro, senhor”,
“Com certeza que sim”, usavam roupa imaculada e sem nunca nenhum botão
em falta, tudo impecável enquanto penduravam uma flor de lis na lapela para
mais um sacramento ao domingo. Elisa nunca fora de missas, mas obrigada
pelos pais e depois pelo patrão, lá acabou por ir. Fazia-lhe confusão as chagas
do Jesus, mas ainda mais os seus olhos fechados, complacentes com o
sofrimento que lhe fora infligido…e foi tudo tão injusto. Ora pois.
O Noel Balino deve ter sido um esquerdista perigoso porque estava
encarcerado desde que Elisa era ainda menina. Sempre ouvira falar no Balino,
como qual bicho papão. “Vai já para a cama, Elisa ou vem o Balino” “Olha o
Balino, Elisa”. E Elisa tinha imaginado uma figura barbuda, alta e disforme,
mas com corcunda e nessa corcunda várias bolhas vulcânicas de pus. O cabelo
ungido de gordura e pedaços de carne de seres que teria devorado e as mãos
ossudas e viscosas. Um ser no entrecruzamento do réptil, gnomo e gigante.
Por isso, quando viu o livro de Balino no monte que teria de ler e rasurar
durante a manhã, não conseguiu deixar de tremer e ter um acesso de suores
frios. Esperava uma autêntica enciclopédia de obscenidades e fetiches
satânicos, mas deparou-se com algo diferente. A sua mão, como que
mecanicamente e habituada à rasura, procurava as frases que melhor se
aplicariam ao gesto, mas o seu cérebro impunha alguma resistência. E Elisa ao
notar traços de uma resistência, esbofeteou-se com força. Resistência era algo
que no regime só se aplicava ao campo da medicina, como quando por
exemplo, uma doença é resistente ao tratamento ou medicamento x e nunca,
mas nunca à sociedade civil, para quê resistir? Se tudo era ordeiro, pacífico e
sublime na paz e na luz do Consulado do Regimento, cuja figura, a de um
sujeito bem-apessoado e sorridente, levantava levemente a mão direita numa
saudação amigável. O sujeito tinha tido um nome anteriormente, mas agora
apenas o tratavam por Estimado Líder e ninguém fugia do seu sorriso e olhar
sadio e amigável, seja nas escolas, ginásios, oficinas, universidades e até alguns
prostíbulos clandestinos. Por isso, Elisa esbofeteou-se e beliscou-se com tanta
força que pequenas lágrimas se aglutinaram à volta dos seus olhos castanhos
cor de caramelo. Lembrou-se por que é que tinha sido escolhida para tão
excelsa tarefa de rasurar obras “perigosas”.
- Elisa, és adequada.
- Elisa, és tão calma e paciente.
No entanto, lembrava-se também das notas do Director do departamento, que
jura que não quisera ler e que até passou uma noite em claro por essa
transgressão não intencionada. Leu “pessoa de sexo feminino altamente
manipulável, ordeira e sã de espírito.”. Passou a noite em claro porque sabia
que não deveria ter lido as notas do Senhor Director, mesmo que
acidentalmente, mas também porque urgiu pensar em como e por que é que a
consideravam aquelas coisas.
Na realidade, Elisa não tinha quaisquer ideias sobre si própria, a não ser
aquelas que lhe impunham os outros, nomeadamente ser estranho ela ter 34
anos e ser solteira. Assim sem um companheiro, parecia até estranho, os seus
pais diziam muitas vezes. Mas Elisa nunca sentiu necessidade de procurar no
sexo oposto qualquer espécie de resposta, ou necessidade de apego, o que
para outras era um imperativo biológico e/ou apego emocional para Elisa era
algo em que nunca pensava e/ou uma completa ausência de necessidade. Por
isso, foi-lhe requisitado em Anexo 36-B Artigo 324º que para facilidade do
prestígio do Regime, lhe seria galardoado um companheiro. O requerimento
entraria em vigor daqui a uma semana. Serviria o Regime na medida de
acasalar e reproduzir como seria digno de qualquer mulher fértil da sua idade e
ainda muito mais novas. Seria o mínimo que podia fazer pelo Regime que lhe
garantira uma existência segura e plácida. Elisa anuiu e prometeu aos pais que
se ia comportar condignamente e aceitar o que o Regime lhe provia como
destino com a dignidade de boa profissional e cidadã sem mácula.
Mas enquanto lia “Da liberdade como a pomba que obra em cima do regime”,
deu por si a olhar, várias vezes para o seu reflexo na janela. Notou que o seu
olhar estava um pouco mais aceso e deu por si a sorrir várias vezes, e a rir até
algumas vezes, e não era como as piadas do Regime sobre homossexuais,
negros, lésbicas, muçulmanos ou emigrantes ilegais. Era um riso genuíno. Aqui
fica a passagem que fez Elisa sorrir e sentir o seu olhar relampejar pela
primeira vez na vida.
“Quando o vi, disseram-me que não era bem assim que se fazia, que tínhamos
de ser só amigos e companheiros de copos. Mas quando o vi, o meu coração
retumbou como no samba do carnaval do Rio de Janeiro, percussão
ensurdecedora, o meu coração fez ZÁS-CATRAPAZ-PAZ-PAZ.”
A passagem seguinte retratava um beijo entre dois homens, algo que Elisa
teria, obviamente de rasurar. Mas não, optou por esconder o livro na sacola.
Algo que era uma transgressão de primeira ordem. Para além disso, infringiu
ainda mais a lei, falseando os registos.
Não foi o pior que Elisa fez. Deu por si, só a conseguir exprimir-se por
onomatopeias como as que lera no livro de Balino. Quando lhe diziam “Bom
dia”, Elisa respondia “Zás”, quando lhe diziam boa tarde, Elisa respondia
“Catrapaz”, quando lhe diziam “Boa noite”, Elisa respondia “Paz paz”. Os
seus pais ficaram imensamente preocupados e iam informar o Departamento
de Comportamento mas Elisa garantiu-lhes que estava bem. Acreditaram,
porque Elisa era tão simples e querida que nunca poderia mentir. Nunca. Mas
Elisa mentiu.
Quando viu o companheiro atribuído pelo Departamento de Matrimónio e
Acasalamento, cujo slogan e jingle ainda vibrava na sua cabeça (“Não sejam
preguiçosos, sejam corajosos, tenham crianças, fomentem as esperanças”)
ficou vidrada a olhar à sua volta e depois finalmente para ele que,
sorridentemente lhe acenou. Cumprimentaram-se de forma respeitosa e ao
modo do regime com um aperto de mão e um sorriso. Elisa ouviu mais os
sons dos talheres que a voz do seu futuro companheiro, por isso permaneceu
na mais completa ignorância sobre ele até saírem do restaurante. Quando ele
lhe pediu para preencher o cartão dele em como tinham jantado e dado
muitíssimo bem, a mão de Elisa ia assinar maquinalmente como quem rasura
livros o dia inteiro há mais de 20 anos, mas algo a impediu. Lembrou-se da
passagem do livro de Balino. O seu coração não ecoava. Nada sentia. E isso
tornou-se intolerável. Não havia samba no seu coração. Então quando o seu
companheiro se aproximou para lhe desejar boa noite com um pequeno beijo
respeitoso na bochecha, Elisa mordeu. Mas selvaticamente, como uma pessoa
perdida no deserto que encontra um oásis. O desespero da salvação. Elisa
mordeu e não largou, até a sua boca se encher de sangue e plasma. Elisa
mordeu e cuspiu. Elisa não ouviu os gritos de horror porque horror era o que
a tinha rodeado ao crescer. Elisa cuspiu bocados de carne. E depois, disse
alegremente ZÁS-CATRAPAZ-PAZ-PAZ, num grito que ecoou pelo país
prazenteiro, brando e fascista.
CZ 13 MAIO 2025
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